segunda-feira, 6 de maio de 2019

Tungstênio, poesia sobre RESISTÊNCIA


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Ouça o álbum Tungstênio: SpotifyYouTubeYouTube - Playlist

A Geografia (e não geografia) tem forte ligação com os movimentos culturais porque é também objeto de interpretação da nossa realidade. Além disso, a Geografia busca interpretar as relações espaciais (de espaço geográfico) que dentre outros elementos contém a sociedade e como ela se desenvolve no tempo e no próprio espaço. Portanto, o R.A.P/Hip-Hop é também objeto de interpretação geográfica.

O R.A.P./Hip-Hop são, de modo geral, produtos da experiência que sujeitos de determinados seguimentos da sociedade possuem com o meio urbano. O urbano é um dos campos de estudo da Geografia que busca entendê-lo se apropriando das dimensões histórica, antropológica, sociológica, econômica, socioambiental, entre outras.
Foi no meio urbano que se manifestaram as primeiras reuniões relacionadas ao R.A.P/Hip-Hop em São Paulo, levando da periferia para o centro jovens interessados na cultura. Entretanto, o aparato estatal se movimentou para contê-los no sentido de marginalizar e, até mesmo, acabar com  esses encontros culturais se justificando, sobretudo, pelo argumento que predominou nos discursos transmitidos e massificados pela influência dos meios de comunicação, forjando o discurso de classes sociais privilegiadas e que não concordavam com essas manifestações sócio-culturais. Mas, o R.A.P/Hip-Hop RESISTIU.

É disso que queremos falar: Espaço, Resistência e Tungstênio.
Acredito que o álbum Tungstênio, do Inquérito, trata muito bem do que disse há pouco. Tungstênio é um elemento químico, mas também um álbum muito relevante para o R.A.P/Hip-Hop nesse momento. Tenho por esse álbum um carinho especial. Primeiro por acompanhar o Inquérito desde meus primeiros acessos a internet através do álbum Mudança, quando buscava uma palavra de estímulo e motivação; segundo por sempre esperar ótimas letras e conceito na música; terceiro pelas participações, em especial do Diomedes Chinaski.

O Tungstênio é destacável por suas características que inspiram RESISTÊNCIA. Está presente e é necessário em vários equipamentos do nosso cotidiano ocupando espaços e funções importantes que não imaginamos, isso é RESISTÊNCIA. Ainda tem como característica o seu alto ponto de fusão impossibilitando, inclusive, sua extração quando há certa quantidade de impureza no mineral, com destaque para Scheelita. Está também na indústria bélica e do aço.  Tungstênio é RESISTÊNCIA.

O R.A.P/Hip-Hop é, até por sua história,  RESISTÊNCIA também, sendo essa uma característica fundamental para a manutenção da cultura como "estrada" (como já cantou o Inquérito em Corpo e Alma) para a periferia. O R.A.P/Hip-Hop como RESISTÊNCIA é mostrado na faixa Lição de Casa. Pra min essa é uma faixa conceitual e muito necessária para o momento em que a cultura vive, podendo ser o piloto necessário para RESISTIR a Turbulência.

O álbum Tungstênio se desenvolve em torno dessa ideia que o Tungstênio traz em termos relativos às propriedades que envolvem o processo de escrita. Na minha visão, o álbum percorre através da busca pelo estímulo para lutar como forma de RESISTÊNCIA; lutar na perspectiva de criar esperança em dias melhores; a busca pela superação buscando e agregando informação como tática nessa luta do cotidiano em que quem faz a máquina girar é invisibilizado.

- "Avisa a vida que não vou parar, tenho laços fortes vou fazer acontecer..."

O álbum encerra com a música Cafuné com Caneta, mostrando que a escrita não  é algo vazio, mas que possui nesse processo dimensões essenciais como história, amor, luta, esperança e RESISTÊNCIA.

Na perspectiva espacial, o Tungstênio compõe uma cadeia produtiva do sistema industrial local e global. O espaço sofre essa influência, modificando-se por vias do atendimento a essa dinâmica e, ao mesmo tempo, organiza outra dinâmica em torno da reprodução do capital urbano. Quero dizer que a estruturação de uma industria vai influir na urbanização de um local que está envolto a essa dinâmica. Esse é o caso de Currais Novos, município que abriga a Mina Brejuí localizada no Rio Grande do Norte, especializada na mineração da Scheelita.

Essa mesma estrutura que contribui com o desenvolvimento é, de forma lógica, contraditória por reproduzir estruturas de poder e dominação sobre a dinâmica social e espacial. As pessoas anônimas são, por isso, os espoliados do desenvolvimento social e espacial, mas, contraditóriamente, sustentam essa máquina.

Por isso, a palavra RESISTÊNCIA soe pra min, nesse álbum, como uma palavra de suma importância para nosso momento enquanto sociedade invisibilizada.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Raio-X do Brasil por Racionais MC's e a noção de marginalização sócio-espacial

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Muito se sabe que o desenvolvimento da economia de mercado como modo de produção predominante na sociedade global, estruturou diversas formas de produção dos espaços. Esses espaços, muito mais que um recorte geométrico, são os ambientes das relações sociais. Toda sociedade depende, para a reprodução das suas relações e o acontecer da força de trabalho, de um espaço e assim, em uma relação contraditória e dialética, um é dependente do outro. Desse modo, é importante pensar sociedade e espaço juntos, ou seja, em relação dialética e, ao mesmo tempo, contraditória. Assim utilizemos sócio-espacial, desconsiderando totalmente o sócioespacial, orientado pela norma gramatical.

Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da economia de mercado ocorre se manifestam as desigualdades sociais. Ocorre que essas desigualdades se manifestam devido também ao crescimento concentrado em termos de renda ou também porque a renda da classe trabalhadora não acompanha o crescimento da renda das classes mais abastadas.

Essa desigualdade econômica também se manifesta e é representada na paisagem, na forma, na estrutura das cidades. Na Geografia percebemos esse processo a partir da influência dos agentes produtores do espaço (Estado, proprietários de terras, promotores imobiliários e os grupos sociais excluídos e aqui cabe acrescentar os grupos marginalizados). Outra forma de entender é a partir da ideia de Milton Santos, utilizando as noções de estrutura, processo, forma e função.

Nesse sentido, a interpretação do espaço e, no caso desse texto, a cidade, é influenciada pelas características do modo de produção em que a ela está inserida. A produção capitalista do espaço, baseada na economia de mercado, cria e recria desigualdades sócio-espaciais significativas e em muitas vezes há a coexistência e a justaposição desses espaços desiguais. A noção marginalização sócio-espacial se incorpora nesse quesito. A foto (Rocinha, Rio de Janeiro) a seguir mostra a diferenciação dos modelos de habitação mostrando uma configuração espacial na cidade da desigualdade sócio-espacial.


Foto minha                  


Mas o que é cidade? Essa pergunta parece ser simples de responder, porém esconde vários meandros se respondida objetivamente como uma estrutura de habitação que, nela, se encontra as atividades necessárias a reprodução social. O geógrafo Roberto Lobato Correa entende a cidade ou o espaço urbano como um conjunto de usos justapostos. Para nós, a cidade é um ambiente de usos complexos (as)sistemático que se estrutura por meio de uma dinâmica em que a reprodução das relações sociais se justapõe e conflitam de modo que se reproduz e reproduz o modo de produção. Este, em primeiro ou segundo plano está sempre presente.

Outra pergunta que deve ser respondida aqui é o que significa ou quer dizer a noção de marginalização sócio-espacial? Essa resposta também não é tão simples. A ideia de marginalização soa no senso comum como algo que está à margem de algo. Essa é a resposta que se encontra de imediato porque de início se considerou essa noção de marginalização ligada a diferenciação entre centro e periferia para o espaço, ou seja, o centro mais infraestruturado que a periferia. Entretanto, essa resposta é superficial para nossa interpretação.

Para entender a marginalização sócio-espacial iniciamos buscando perceber a ideia de marginalidade social, pelas quais é entendida como a relação que a classe trabalhadora tem com o mundo do trabalho. O trabalhador é marginalizado ao mesmo tempo em que o mundo do trabalho requer menor demanda pelo trabalho humano quando emprega novas tecnologias que o substituem e aumenta a produtividade, bem como a capacidade de lucro do proprietário dos meios de produção. E nessa lógica o trabalhador, como diz José Nun, está sujeito a funcionalidade, a disfuncionalidade e a afuncionalidade dentro do sistema de produção. Lúcio Kowarick, por sua vez, entende, e não discordando de José Nun, como um corte horizontal que separa as bases do sistema produtivo (classe trabalhadora) e os segmentos superiores.

Entendendo o que significa marginalidade social, incorporemos o espaço, tendo em vista que não se pode separar a sociedade e o espaço por sua própria natureza. A produção capitalista do espaço produz o efeito da segregação espacial decorrente do próprio sistema que cria e recria as desigualdades sociais e econômicas. Há em meio a produção do espaço a seletividade espacial em que os agentes produtores do espaço empenham forças, conforme seus interesses, para reproduzir o espaço, cada um com seu papel embora desempenhem funções distintas.

Se retornarmos ao período da II Revolução Industrial percebemos, através dos estudos de campo de Friedrich Engels quando interpreta a situação da classe trabalhadora no Reino Unido, com destaque para a cidade de Manchester, que a classe trabalhadora esteve sempre vulnerável espacialmente onde as infraestrutura era mínima, habitação em condições subumanas, expostas a epidemias, ao crime, a fome, no nível de consumo de bens e serviços (quando ocorria).

A segregação espacial ocorre se aproveitando das áreas de valorização do capital, implicando, como afirmam Minor Salas e Franklin Castro, nos usos diferenciais do nível da renda influenciando em usos diferenciais e funcionais do espaço. Isso quer dizer que os agentes produtores do espaço irão investir de modos distintos no espaço e também na cidade sempre em conformidade com o nível da renda da população.

O bem-estar social, nesse sentido, é ameaçado devido a segregação social que imputa ao espaço uma organização associada ao nível da renda da população e aliena a classe trabalhadora ao acesso, ao uso e consumo da cidade.

Podemos, portanto, entender a noção de marginalização sócio-espacial como não decorrente da diferenciação entre centro e periferia, mas dentro da lógica do próprio modo de produção que se apropria da cidade como um artifício para a reprodução do capital, criando dessa forma espaço privilegiados e não privilegiados.

E o que o álbum Raio-X do Brasil do Racionais MC's tem a ver com essa noção de marginalização sócio-espacial? 

A obra que o Racionais MC's foi construída alinhado a essa ideia de marginalidade social e exclusão social, buscando, sempre, expor os problemas vividos nas periferias e pelos periféricos nos centros com muita propriedade e postura política.


A "diferenciação" observada nas características espaciais e isso impactando as cidades que foi mostrada anteriormente se percebe com muita facilidade no contexto brasileiro. Francisco de Oliveira trata esse assunto com muita propriedade. Ele percebe em seus estudos que, diferentemente dos países de capitalismo maduro (este relacionado aos países que passaram pelo processo evolutivo do mundo do trabalho industrial) o Brasil não adotou um projeto de estruturação da classe trabalhadora como um elemento significativo na dinâmica econômica doméstica. Pelo contrário, o histórico industrial do país projeta a desestruturação da classe trabalhadora como um pressuposto ao crescimento econômico.


Nesse sentido, pode-se associar os interesses da classe burguesa pela exploração de uma mão de obra desestruturação social, econômica e politicamente. Veja, o governo brasileiro criou as leis trabalhistas para trabalhadores no setor industrial ainda em um período em que as cidades tinham pouca representatividade como um espaço de produção, haja vista que a economia cafeeira era a predominante além de outras atividades agrícolas.


O contexto da entrada do Brasil como predominantemente urbano é um assunto que em outro momento pode ser explorado. Isso aconteceu somente na segunda metade do século XX estimulado, principalmente, pelas políticas de desenvolvimento industrial sob o discurso da modernização do país.


Mas voltando ao assunto Raio-X do Brasil, se utiliza aqui de recortes específicos de cada música do disco e se faz breves comentários tentando a associação com a noção de marginalidade sócio-espacial.


A primeira música, "Fim de semana no parque", apresenta imediatamente o ouvinte em um significativo ambiente produzido de modo desigual. Isso é marcante porque evidencia os frutos de má distribuição da renda no país, elemento esse que é marcante na história do Brasil industrial e urbano.




[...] mês de janeiro, São Paulo, zona sul / 1, 2, 3 carros na calçada/ feliz e agitada toda playboyzada / lavam os carros, desperdiçam a água eles fazem a festa / olhe o meu povo nas favelas e vai perceber / daqui eu vejo uma caranga do ano / com seus filhos ao lado / estão indo ao parque / eufóricos, brinquedos eletrônicos / automaticamente eu imagino a molecada lá da área como é que tá / provavelmente correndo pra lá e pra cá / jogando bola descalço nas ruas de terra / eles não tem videogame as vezes nem televisão / eles também gostariam de ter bicicleta / gostam de ir ao parque se divertir 


Aqui há a dualização do espaço urbano (como diria Villaça intra-urbano) associado diretamente a capacidade de consumo dos seus respectivos habitantes. Apresenta ainda algo mais grave no sentido da marginalização sócio-espacial que é a de que os espaços são estruturados de acordo com essa capacidade de consumo e a não capacidade o deixa alheio as diversão no parque e, até mesmo, a felicidade.


[...] olha só aquele clube que da hora, olha aquela quadra, olha aquele campo, olha / olha quanta gente, tem sorveteria, cinema, piscina quente / olha quanto boy, olha quanta mina / tem corrida de kart dá pra ver / é igualzinho o que eu vi ontem na tv / olha o pretinho vendo tudo do lado de fora / ele apenas sonha através do muro / milhares de casas amontoadas, ruas de terra esse é o morro / gritaria na feira (vamo chegando) / eu gosto disso mais calor humano / na periferia alegria é igual / é lá que mora meus irmãos, meus amigos / e a maioria por aqui se parece comigo

Ainda nesse fragmento mostra o espaço intra-urbano de modo dual, mas que, vale lembrar, pertencente ao mesmo processo histórico-social. Se incorpora também no discurso do Racionais MC's o componente racial e, de modo preciso, o grupo aponta para o viés de que a urbanização brasileira expressa racismo existente em sua estrutura. Haja vista que as piores condições habitacionais estão entre os negros. Isso é resultado e tem de ser enfatizado e discutido pelo modelo de transição da sociedade colonial agroexportadora para uma sociedade industrial, majoritariamente.


[...] aqui não vejo nenhum clube poliesportivo / pra molecada frequentar nenhum incentivo / o investimento no lazer é muito escasso / o centro comunitário é um fracasso / mas aí, se quiser se destruir está no lugar certo / tem bebida e cocaína sempre por perto / a cada esquina 100, 200 metros / Schimith, Taurus, Rossi, Dreher ou Campari / nomes estrangeiros que estão no nosso meio para matar / tô cansado dessa porra de toda essa bobagem / alcoolismo, vingança, treta malandragem / mãe angustiada, filho problemático, famílias destruídas, fins de semana trágicos / fim de semana no Parque Ipê

Após a dualização o Racionais MC's inteligentemente elaboração uma comparação entre a percepção de parque do ponto de vista da periferia e da playboyzada, pra min isso foi genial. Além disso, o grupo aponta que essa desestrutura espacial é intencionalmente provocada pelo sistema e o Estado como provedor de bem-estar social pouco ou nada contribui para que a periferia não se destrua com o que o sistema oferece.

Na segunda música, "Mano na porta do bar", adentramos a experiência na perspectiva da dimensão vivida pelo sujeito na periferia. Percebemos aqui que o ambiente e a influencia que o sistema exerce sobre a população periférica, como foi finalizada na primeira música, de modo sistematizado.



[...] tem poucos bens mais que nada / um fusca 73 e uma mina apaixonada / uma vida humilde, porém sossegada / um bom filho, um bom irmão / um cidadão comum com um pouco de ambição / você viu aquele mano na porta do bar? / você viu aquele mano na porta do bar? / ultimamente andei ouvindo ele reclamar que a sua falta de dinheiro era problema / que sua vida pacata já não vale a pena / queria ter um carro confortável / queria ser um cara notado / na lei da selva consumir é necessário / compre mais, compre mais / supere seu adversário / o seu status depende da tragédia de alguém / é isso, capitalismo selvagem / você viu aquele mano na porta do bar? / ele mudou de mais de um tempo pra cá / ele está diferente não é como antes / agora anda armado a todo instante / transformação radical no estilo de vida / ontem sossegado, hoje um homicida / ontem a casa caiu com uma rajada nas costas

A terceira música, "Homem na estrada", é um verdadeiro tour na periferia de modo que sensibiliza o ouvinte menos informado da realidade periférica para o cotidiano desses espaços.


O homem na estrada recomeça a sua vida, sua finalidade: a sua liberdade / que foi perdida, subtraída e quer provar a si mesmo que realmente mudou, que se recuperou e que viver em paz / não olhar para trás e dizer ao crime nunca mais / pois sua infância não foi um mar de rosas não / na Febem lembranças dolorosas então / sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim /  muitos morreram sim, sonhando assim / me diga quem é feliz, quem não se desespera / vendo nascer seu filho no berço da miséria / um lugar que só tinha como atração um bar e um candomblé pra se tomar a benção / esse é o palco da história que por min será contada

Ora, se na primeira música tivemos um choque sobre o espaço intra-urbano dual e ao mesmo tempo antagônicos, nessa faz refletir sobre o que é violência e para isso é importante perceber o que diz Michel Misse quando destaca a acumulação da violência como um produto do processo histórico intimamente ligado ao modo de reprodução do sistema de produção, ou seja, da economia de mercado.


[...] equilibrado num barranco cômodo, mal acabado e sujo / porém seu único lar, seu bem e seu refúgio / um cheiro horrível de esgoto no quintal / por cima ou por baixo, se chover será fatal / um pedaço do inferno aqui é onde eu estou / até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou / numerou os barracos, fez uma pá de perguntas / logo depois esqueceram, filha da puta! / acharam uma mina morta e estuprada / deu meia noite e o corpo ainda estava lá / coberto com lençol, ressecado pelo sol / jogado, o IML estava só 10 horas atrasados / sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim / quero que meu filho nem se lembre daqui / tenha uma vida segura, não quero que ele cresça / com um oitão na cintura e uma pt na cabeça / o resto da madrugada sem dormir ele pensa / o que fazer para sair dessa situação? / desempregado, então / com má reputação / viveu na detenção / ninguém confia não / e a vida desse homem para sempre foi danificada

Nesse trecho fica claro o que José Nun discorreu sobre funcionalização, disfuncionalização e afuncionalização da classe trabalhadora com o mundo do trabalho. No contexto brasileiro é de progressiva pauperização e essa característica sócio-econômica se reproduz no espaço em formas de más condições de habitação e ocupação em áreas de risco.


[...] amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual / calor insuportável 28° / faltou água já é rotina, monotonia / não tem prazo pra voltar, já fazem 5 dias / são 10 horas a rua está agitada / uma ambulância foi chamada com extrema urgência / estourou a própria mãe estava embriagado / arrastado pela rua o pobre do elemento / inevitável linchamento / os ricos fazem campanha contra as drogas e falam sobre o poder destrutivo delas / por outro, lado promovem e ganham muito dinheiro com o álcool que é vendido na favela / empapuçado ele sai, vai dar um rolê / não acredita no que ver, não daquela maneira / crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo seu café da manhã  na lateral da feira / molecada sem futuro já consigo ver / só vão na escola pra comer, apenas nada mais / como é que vão aprender sem incentivo de alguém, sem orgulho, sem respeito, sem paz

Mais uma vez o grupo genialmente elabora uma estrutura narrativa e faz uma crítica relevante sobre o sistema sócio-econômico de reprodução da economia de mercado. O grupo constrói uma estrutura sob o pressuposto do problemas das drogas e destaca o álcool como uma droga altamente destrutiva. O que marca é que a indústria de alimentos e bebidas, historicamente, se constituiu como uma das mais importantes no contexto da dinâmica de produção e consumo nas cidades. Isso quer dizer que há uma crítica ao modelo de industrial, principalmente a industria do álcool que impacta fortemente na vida da população da periferia como um artifício do sistema.


[...] um mano meu tava ganhando um dinheiro / tinha comprado um carro, até Rolex tinha / foi fuzilado à queima roupa no colégio / abastecendo a playboyzada de farinha / ficou famoso, virou notícia / rendeu dinheiro aos jornais, hãm, cartaz a polícia / 20 anos de idade / alcançou os primeiros lugares / superstar do Notícias Populares / uma semana depois chegou o crack / gente rica por trás, diretoria / aqui periferia miséria é de sobra / um salário por dia garante a mão de obra / a clientela tem grana e compra bem / tudo em casa, costa quente de sócio / vender droga por aqui, grande negócio / sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim / quero um futuro melhor não quero morrer assim / num necrotério qualquer, um indigente sem nome sem nada

São dois caminhos para a recuperação de um ex-apenado dentro do que a sociedade julga correto: uma apresentada no fragmento acima pela qual o resultado é amplamente conhecido na periferia por ser um empreendimento lucrativo e de destino degradante e o segundo descrito abaixo:


[...] como se fosse uma doença incurável no seu braço a tatuagem / DVC, uma passagem / 157 na lei, do seu lado não tem mais ninguém / a justiça criminal é implacável / tiram sua liberdade, família e moral mesmo longe do sistema carcerário / te chamarão pra sempre de ex-presidiário

Essa saída é contestável devido a exclusão, não marginalização, do ex-apenado do mundo do trabalho por seus antecedentes criminais.

Por fim, a música "Júri racional" é um sopro de autoestima e luta por liberdade. Busca-se, nela, apontar uma direção para que os jovens da periferia busquem driblar o sistema e se tornar o efeito colateral entendendo a sua realidade e se posicionando frente a imposição desse cotidiano violento.



[...] a inferioridade que você sente no fundo dá aos racistas imundos razões o bastante pra prosseguirem nos fodendo como antes / ovelha branca da raça, traidor / vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor / mas nosso júri é racional não falha / não somos fãs de canalha / gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee / Zumbi um grande herói, o maior daqui / são importantes para min, mas você ri dá as costas / então acho que sei da porra que você gosta / se vestir como playboy, frequentar danceteria, agradar as vagabundas, ver novela todo dia, que merda! / se esse é seu ideal é lamentável / porém não quero, não posso, sou negro, não vou admitir / do que vale a negritude se não pô-la em pratica / a principal tática, herança da nossa Mãe África / escravizaram sua mente / muitos da nossa gente / mas você não demonstra interesse em se libertar/ essa é a questão, autovalorização / esse é o título da nossa Revolução

Nesse fragmento o que se aborda é que os artifícios criados pelo sistema (atores hegemônicos) que foram mostrados claramente no decorrer do disco sejam combatidos pela luta negra por liberdade. Assim, a Revolução ocorrerá e a periferia poderá se ver livre dessas amarras.

Encerramos essa análise afirmando que a noção de marginalidade sócio-espacial está presente também na perspectiva da arte periférica. Pois, a construção da narrativa e os elementos que a compõe estão alinhados tanto a percepção quanto a experiência sócio-econômica que os indivíduos tem com o mundo do trabalho. O resultado disso é que o espaço intra-urbano é dotado de desigualdade sócio-espaciais, sócio-econômicas, sócio-políticas, culturais, etc, estes elementos estão pairando no próprio ar da periferia, mas perceber isso é algo pouco acessível. É por isso que é fundamental pra quem é ouvinte de RAP e/ou Hip-Hop retomar aos discos clássicos e, assim, entender o que se pensava e como esse movimento está intimamente ligada aos movimentos libertários.





OUÇA O DISCO: RACIONAIS MC's - RAIO-X DO BRASIL





sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A RELAÇÃO ENTRE O RAP E A GEOGRAFIA


A RELAÇÃO ENTRE O RAP E A GEOGRAFIA



A Geografia, ou melhor dizendo, a Ciência Geográfica tem um relação estreitíssima com o movimento RAP como um todo, porém as músicas são verdadeiras narrativas antropológicas, sociológicas, filosóficas, entre outras ramificações que podemos assegurar que compõem a completude dessa arte periférica. Mostrando também a riqueza cultural e intelectual presente na experiência de vida das periferias do Brasil. Evidenciando, mais fortemente também, o descaso, bem na lógica da música "Descaso" do grupo DMN (https://www.youtube.com/watch?v=CohzSkSOiRY), com do poder público com essas vidas.

Deve-se, para compreender a relação entre a Geografia com o RAP, conhecer os conceitos que norteiam as pesquisas geográficas. O primeiro é o conceito de espaço geográfico, esse conceito é bastante complexo. Mas Milton Santos resume essa complexidade em um "conjunto complexo e indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações". Isso quer dizer o espaço geográfico é composto por intenções a partir do desenvolvimento das técnicas no percurso da humanidade (domínio do fogo, domínio da agricultura, domínio da informação, entre outros exemplos) através também dos objetos (como empresas e objetos técnicos). Existe também a complexidade inerente a vivência dos grupos sociais com o espaço, a cultura e como ela se reproduz na nos agentes da coletividade.

Podemos distinguir a compreensão do conteúdo presente no espaço geográfico a partir dos conceitos de paisagem, lugar, território e região. Estes conceitos estão diretamente relacionados a experiência da sociedade com o espaço, seja no desenvolvimento das técnicas em si ou no uso das técnicas para manipular em seu favor a estrutura do espaço.

Em relação aos conceitos, cada um deve cumprir uma função específica no rumo da interpretação geográfica. A Paisagem é entendida como a configuração espacial, como o espaço se apresenta em termos paisagísticos independentemente se é bonita ou feia, natural ou transformada pelo homem. Essa representação ocorre fortemente na música do Racionais MC's "Diário de um detento" quando é descrito minimamente o dia a dia no Carandiru, criando no ouvinte o imagético do sistema carcerário com sensações transmitidas pela música.

O conceito de Lugar, talvez o mais presente, é caracterizado por permitir entender um recorte espacial presente no cotidiano. Isso quer dizer que há uma vivência, uma relação próxima e até afetiva com o espaço em questão, como exemplo, o bairro, a quebrada, a rua, a cidade. Pode ser destacado vários rappers que utiliza a força do seu lugar como um elemento importante na música, gerando assim, a identificação entre as realidades vividas. Desses Sabotage em "Um bom lugar" (https://www.youtube.com/watch?v=GA7LcSX8tYE), Rapadura em "Amor popular" (https://www.youtube.com/watch?v=Sq2tDGgTzk4), GOG em "A ponte", entre outros. E quando o RAP é o nosso Lugar? O Inquérito também contribui em "Lição de casa" (https://www.youtube.com/watch?v=bfx7OXyqXhM).

O conceito de Território é discutido na Geografia com base na apropriação do espaço através da política, da força, da imposição, dentre outras formas. O espaço no RAP é tomado através das músicas do Diomedes Chinaski "Nordeste no comando" (https://www.youtube.com/watch?v=7dMWGo1hYqg) onde o artista se impõe no cenário do RAP mesmo mostrando em outra música "Sulicídio" (https://www.youtube.com/watch?v=_2r0OtMxj20) o distrato do público com os rappers nordestinos.

O conceito de Região é tratado a partir da compreensão das semelhanças existente em determinado recorte do espaço incluindo territórios e lugares, onde se percebe semelhanças culturais, naturais, entre outros. Um representante autêntico do RAP é o Rapadura em toda a estrutura do fazer o RAP, ultrapassando o apresentado na escrita. Os discos "Amor Popular" e "Fita embolada do engenho" são marcantes na representação da cultura nordestina.

O RAP passa por um processo de mudança. Em tempos passados, o RAP era estruturado em cenários, desdobramento da música e conclusão assim como uma história. Podemos então dizer que as letras eram bem mais geográficas, como pode ser percebido nas músicas do Racionais MC's, Thaíde e DJ Hum, 509-E, entre outros. Porém, atualmente a Geografia se faz muito presente através das reivindicações das minorias nas linhas. Isso é visto em Rincon Sapiência, Lívia Cruz, Baco Exu do Blues, Djonga, no Coletivo Rimas e Melodias, Thiago El Niño, Coruja BC1, Rashid, Emicida, Rico Dalasam, em tantos outros. A representatividade desses rappers em um momento em que a "ignorância [está] tão alastrada" (INQUÉRITO, Renan) abordam mediante a massificação da cultura temas importantes que, por vezes, se mostram como tabus.

sábado, 7 de outubro de 2017

EU TIVE UM SONHO, VOU MIGRAR PARA SÃO PAULO

       
Ouça a música: https://www.youtube.com/watch?v=SLvlzO3Gmto


   
      "Eu conto história das quebradas desse mundaréu, lá de onde o vento encosta o lixo e as pragas bota os ovos. Falo da gente que sempre pega a pior, que come da banda podre, que mora na beira do rio e quase se afoga toda vez que chove, que só berra da geral sem nunca influir no resultado. Falo dessa gente que transa pelos estreitos, 'escambosos' e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. Falo desse povão que apesar de tudo é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente na existência melhor na paz de Oxalá. Quem quiser saber meu nome não precisa nem perguntar. Eu me chamo Ogi"

    Nesta publicação iremos nos deter a obra "Crônicas da Cidade Cinza" do Rapper Rodrigo Ogi. Eu, particularmente, a trato como uma obra genial de um teor complexidade incrível e genuinamente urbana. Algumas faixas, no meu modo de ver e levando em consideração o conteúdo, se sobressaem. Em destaque, Cidade com Nome de Santo, Profissão Perigo, Por que, Meu Deus?, A vaga, A Corrida dos Ratos, Eu Tive um Sonho, Monstro Gigante e Os Tempos Mudam.

      Nesse sentido, pretendemos entender a luz da Geografia a linhas escritas por Ogi em "Eu Tive um Sonho". É nítido e importante salientar que a faixa apresenta um contexto de um sujeito nordestino que, por questão de sobrevivência, migra para a "Cidade com Nome de Santo".

            Parte 1:

Meu pai me disse: vai cabra da peste,
Vai tentar a sorte muito longe do Nordeste
Tem seca no Nordeste, simbora filho
Segue sua sina mas não deixa nada te tomar o brilho
Olhei meu pai, me despedi, beijei mamãe, bênção pedi
Era hora de partir, subi no caminhão segui;
Ahhh...
Nem tive tempo de chorar
Eu tinha que ter muita garra
Visualizei o que eu sonhei pra mim;

     É de conhecimento geral que o Nordeste passa por constantes dificuldades provenientes da irregularidade das chuvas, esta é uma das características do geossistema da região. Porém, a palavra seca remete a um conceito bem maior que a simples falta d'água.

              Há uma forte ligação as formas de dominação sobre o território sertanejo utilizando como artifício esse contexto da irregularidade das chuvas. Em uma breve pesquisa na internet, perceberemos que há sim disponibilidade tecnológica para a amenização e, até mesmo, a solução para esse problema.

     O sertão nordestino foi desenvolvido a partir das atividades agropecuárias, posteriormente, mineração e, no contexto, atual percebe-se maior diversidade produtiva. Essa "diversidade" produtiva no Nordeste teve início com a criação e efetivação das ações da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) já na segunda metade do Século XX (1950). Esse período, entre 1950-1990, é que se verifica um grande fluxo migratório da população nordestina para São Paulo (a "Cidade com Nome de Santo").

        Esse período no Brasil foi muito significativo, quando se buscou um rápido crescimento industrial com um forte anseio político pela modernização do território nacional e os fatos comprobatórios foram a construção de Brasilia como cidade moderna e a interiorização da capital do país.

             A SUDENE teve grande participação no desenvolvimento industrial do Nordeste, buscando a significação das potencialidades no interior da própria região nordeste. No Rio Grande do Norte, o desenvolvimento industrial se voltou para a expansão da indústria têxtil já que uma das suas potencialidades era a produção algodoeira que vivia um bom momento durantes esse período.

        O desenvolvimento da indústria não se espacializa em todo o território, caracterizando-o como um dos movimentos da economia do Nordeste que resultou na concentração de renda de uma pequena parcela da população sertaneja. O produto dessa concentração de renda na região é um alto nível de desigualdade social.

              Em contrapartida se vê um alto desenvolvimento industrial na região Sudeste, ou melhor na Região Concentrada como chamou Milton Santos.

                Parte 2:

Maravilhado eu fiquei
Logo que aqui desembarquei
Agradeci, me ajoelhei
Glória Padim Ciço rei
Me apresentei pra trabalhar
Direto na carga pesada
Subi bondes, edifícios
Minha mão já calejava;
Ohh...
Conheci minha "filó"
Numa festa no forró
Me casei e construí o meu mocó

       A parte 2 mostra o quanto foi surpreendente chegar a São Paulo e, utilizando o mesmo recorte temporal (entre 50-90), pode ser percebido o grande desenvolvimento industrial que, consequentemente, influenciou em uma maior dinâmica socioespacial.
    
      Dessa forma, as políticas de industrialização desde a Era Vargas contribuíram para a concentração industrial na referida Região Concentrada. Somadas a isso, os esforços durante o Governo JK e o Regime Militar também reforçou a concentração industrial e as disparidades regionais.

       É no sentido de um espaço altamente reproduzido, complexo de interação que caracterizam a maior metrópole brasileira, que o personagem da faixa se surpreende com a imensidão de São Paulo. Uma realidade de vida totalmente diferente da vivida no Nordeste. O processo de reprodução do espaço de São Paulo, recebeu um contributo muito importante e significativo dos nordestinos, tanto no que podemos referir a habitação nas periferias quanto na sua função como mão de obra barata. Além disso, esse fluxo migratório é um fator de expansão da territorialidade nordestina, tendo em vista que a cultura se mantém nos costumes do personagem.